"Última
década de crescimento econômico brasileiro foi obra do esforço e do trabalho da
parte de baixo da população, que dinamizou a sociedade – e seu avanço é que
pode garantir nosso futuro", afirma sociólogo Jessé de Souza.
O
Brasil de hoje está diante de nova escolha histórica que pode decidir seu
futuro. Essa escolha se refere a dois modelos de sociedade distintos.
O
primeiro, que ainda é o dominante, foi gestado em outro momento decisivo de
nossa história, um desses momentos raros em que a escolha entre caminhos
alternativos possíveis se realiza e se congela depois em uma espécie de
“destino” para as gerações futuras.
Esse
momento foi o golpe de 1964 e das forças que o apoiaram, que optou por construir
um modelo de moderna sociedade de consumo para 20% da população. Essa opção
histórica foi consolidada nos anos 1990 com o governo FHC.
O
segundo modelo representa o anseio das forças derrotadas em 1964 por uma
sociedade mais inclusiva. Modelo esse que vingou na esfera política nos últimos
12 anos, ainda que longe de deter a hegemonia na esfera pública que constrói a
“opinião pública” e, portanto, não detém o efetivo controle da prática
econômica e social.
Afinal,
existem limites claros para um Estado reformador em meio a uma sociedade
conservadora.
Ainda
que esse segundo modelo tenha conseguido incluir, de modo precário e instável,
outros 20% adicionais da população no mercado de consumo e reduzido formas
extremas de miséria material, seu desenvolvimento se deu de modo errático,
incompleto, sem efetivo planejamento e ao sabor das conjunturas.
A
fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo é explicada pela
manutenção da força social e econômica do modelo anterior, as quais se
mantiveram intocadas mesmo depois da eventual perda do poder político.
Para
que compreendamos a força inabalada do modelo dominante, mesmo com a perda
eventual do poder político, é preciso compreender como funciona a íntima e
orgânica relação entre economia e a política.
A
pedra de toque para que possamos perceber esse jogo, sempre mantido
cuidadosamente nas sombras, é o mote da “corrupção e ineficiência estatal”
contraposta à suposta virtude e eficiência do mercado.
Essa
é, na realidade, a “única bandeira” de legitimação do modelo excludente de
sociedade ainda no poder real. Esse é, afinal, o único pretexto por meio do
qual os interesses mais privados do 1% mais rico podem ser travestidos em
suposto interesse geral.
Na
verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma
de “corrupção organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da
própria definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o
batedor de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street — a matriz da
Avenida Paulista — que frauda balanços de empresas e países e arruína o
acionista minoritário embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários.
Enquanto
os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de
países inteiros, ganha foto na capa da Time como financista do
ano.
Quem
é que ganha, na verdade, com a corrupção tornada legal do mercado e celebrada
como mérito? É isso que o cidadão feito de tolo não vê.
No
Brasil, inclusive, a tolice é ainda muito pior que em qualquer outro lugar.
Nenhuma
sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa, na qual quase 70%
do PIB é ganho de capital — lucro, juro, renda da terra ou aluguel — e está
concentrado no 1% mais rico da população.
Por
outro lado, só cerca de 30% cabe aos salários dos restantes 99%. Nas sociedades
capitalistas mais dinâmicas da Europa, como França e Alemanha, essa relação é
inversa. Nós, brasileiros, somos pelo menos o dobro mais tolos que os europeus.
Essa deveria ser a real vergonha nacional.
Mas
tem muito mais. Essa transferência grotesca de riqueza entre nós é realizada
por serviços e mercadorias superfaturados — cobrados pelo mercado e não pelo
Estado — com as taxas de juro e de lucro mais altas do mundo, que são cobradas
pelos bancos e pelas indústrias cujos lucros e juros vão para o 1% mais rico.
E
quem são as classes cujos indivíduos são feitos de tolos senão aquelas médias e
trabalhadoras ascendentes, precisamente as que consomem os carros com o dobro
da taxa de lucro dos carros europeus; pagam taxas de juro estratosféricas para
bancos em qualquer compra a prazo; e serviços de celular dos mais caros do
mundo, ainda que o serviço seja incomparavelmente pior?
Quem
é feito de tolo aqui senão partes significativas das classes médias e
trabalhadoras ascendentes, muitas das quais defendem o Estado mínimo e o
mercado máximo e pagam preços máximos por produtos e serviços mínimos e de
baixa qualidade a capitalistas que possuem monopólios para produzir mercadorias
e serviços de segunda categoria?
É
essa “corrupção organizada” do mercado que “aparece” como milagre do mérito de
capitalistas que na verdade herdaram o privilégio e nunca correram nenhum
risco. E é essa visão das coisas que é difundida na esfera pública. Se
pensarmos duas vezes, no entanto, percebe-se que o Estado é, pasme-se, o único
lugar onde a corrupção ainda é visível como tal e tem, portanto, alguma
possibilidade de controle real.
Decisivo,
também, é o papel das frações majoritárias e conservadoras da classe média de
“verdade” entre nós, aquela que tem um estilo de vida e padrão de consumo semelhante
a suas irmãs europeia e americana. Essa classe média é a sócia menor do modelo
de sociedade para 20% da população e ocupa os cargos de prestígio do mercado
superfaturado e monopolizado.
Essas
frações são a “tropa de choque” do 1% de endinheirados não só porque o defendem
na prática nos tribunais, nas salas de aula, nos jornais e em todas as
dimensões do cotidiano onde a defesa dos privilégios dessa pequena minoria e de
seu sócio menor está em jogo; ela também é quem sai à rua, como nas manifestações
de junho de 2013, sequestrando as demandas populares do início dos protestos em
nome da eterna corrupção só da política, para defender os interesses da classe
de endinheirados que a explora.
Afinal,
esse 1% é a única parcela que efetivamente tem algo a ganhar quando se encurta
o Estado e se mercantiliza toda a sociedade.
Nas
sociedades que aprenderam a mitigar a produção de desigualdades que o
capitalismo estimula, foi o Estado que retirou a saúde, a educação e a
previdência das mãos do mercado, de modo a garantir um mínimo de condições
básicas de competição social mesmo para quem não nasceu em berço privilegiado.
Demonizar
o Estado é o pretexto perfeito para quem ganha com a mercantilização total da
sociedade, ou seja, o mesmo 1% que já controla toda a riqueza. Mas a tolice das
classes médias e frações ascendentes que compram esse discurso como se fosse
seu não explica a raiva e o ódio ao uso do Estado – ainda que de modo parcial,
incipiente e inconcluso — para os interesses da maioria esquecida da população
brasileira.
Isso
acontece hoje em dia num grau muito mais alto, posto que essa classe, agora,
teme por seu lugar de privilégio devido ao encurtamento do espaço social com as
classes populares que foi a principal obra dos últimos governos.
O
Brasil de hoje ainda marginaliza 60% de sua população das benesses da sociedade
moderna, mas o Estado ousou aumentar o número de incluídos no mundo do consumo
de 20% para 40%. É a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada
a um exército de servidores cordatos e humilhados, que explica a tolice dos que
compram a ideia absurda de mais mercado no país do mercado já mais injusto e
concentrado do mundo.
A
raiva, no fundo, é contra o fato de muitos desses esquecidos estarem agora
competindo pelo espaço antes reservado à classe média, como vimos nos
“rolezinhos”, nas reclamações dos aeroportos cheios e na perda dos valores de
distinção com relação à “gentinha” não mais tão cordata e humilhada.
Sem
o ressentimento e o desprezo ao populacho — no fundo, o medo da competição
social revertido em agressão –, não há como entender que tanta gente seja
manipulada por um discurso hoje tão descolado da realidade como o da virtude do
mercado e demonização do Estado.
Se
existe algum bem na polarização das últimas eleições é que ela mostra os
conflitos reais que racham a sociedade contemporânea brasileira: a contradição
entre as classes sócias no projeto de construção de uma sociedade para 20% e o
projeto inconcluso e incipiente de um Brasil para a maioria da população.
A
segunda “abolição da escravatura” — hoje não mais de uma raça, mas de uma
grande classe de excluídos — proposta por Joaquim Nabuco há mais de cem anos é
hoje mais atual que nunca.
Esse
é o núcleo do modelo alternativo de sociedade para o Brasil moderno. Central para
o sucesso do projeto é que tanto as frações progressistas da classe média –
elas também existem – quanto as que hoje são feitas de tolas por seus
verdadeiros algozes compreendam que têm muito mais a ganhar com um Brasil mais
inclusivo.
A
última década de crescimento econômico brasileiro, depois de 30 anos de
estagnação, foi obra do esforço e do trabalho da parte de baixo da população,
que logrou dinamizar a economia e a sociedade como um todo. Com um mínimo de
estímulo, foram as classes populares voluntariosas que encheram de otimismo e
vigor uma sociedade estagnada e decadente.
O
futuro do Brasil, e muito especialmente das classes médias e ascendentes, não
aponta para a aliança subordinada com os endinheirados em que o lugar do otário
e do esperto já está pré-decidido. Aponta para o novo, para o nunca realizado
que é a verdadeira cura para a doença brasileira: o câncer do Brasil para
poucos.
Para
isso não é preciso muito: só um pouquinho mais de reflexão e generosidade e um
pouquinho menos de mesquinharia e tolice.
* Jessé
de Souza, doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e
professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), é autor de ‘A Ralé
Brasileira: Quem é e como vive’ (Humanitas)
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