sábado, 15 de novembro de 2014

"Paga-se muito pouco pela água no Brasil", diz chefe de comitê da ONU

Para o presidente do Comitê Brasileiro das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Haroldo Mattos de Lemos, baixo preço cobrado pelo recurso leva população a desperdiçá-lo mais

Desde que a crise hídrica se tornou de conhecimento público em São Paulo, algumas práticas de uso de água no Estado, antes criticadas pontualmente, passaram a ser amplamente condenadas por autoridades, especialistas e pela própria população. É o caso de lavar calçadas e carros com mangueiras ou de passar longos minutos no banho. Enraizada em diversas pessoas, essa cultura distorcida do uso do recurso natural tem, no entanto, uma explicação: o baixo custo da água no País.
                Haroldo Mattos de Lemos ressalta que governos precisam investir em ações de longo prazo
A opinião é de Haroldo Mattos de Lemos, presidente do Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), para quem tais práticas de desperdício só cessarão quando as pessoas realmente sofrerem prejuízo com elas. "O problema no País é que ninguém dá muito valor à água. Isso só acontece quando ela começa a faltar", diz o especialista, também coordenador dos cursos de Pós-Graduação em Gestão Ambiental da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Então concordo plenamente com a opção de se aumentar o preço da água, porque, dessa forma, as pessoas que desperdiçam sentirão o mau uso no bolso."
Lemos é um dos convidados da mesa-redonda "Finanças Verdes", parte do evento "Caminhos para o Futuro que Queremos", organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) em parceria com a Fundação Konrad Adenauer, que será realizado na próxima terça-feira (18), no Rio de Janeiro. Em entrevista ao iG, o especialista falou sobre crise hídrica no Sudeste, criticou atitudes de governos e ressaltou as alternativas que considera essenciais para evitar que a população venha a de fato ficar sem água futuramente.
iG - Desde o início do ano, o governo de São Paulo fala que a falta de chuvas é responsável pela crise hídrica atual. No entanto, especialistas têm batido em outras teclas, principalmente na necessidade de reflorestamento no entorno dos reservatórios de água para que a situação de fato se inverta no Estado. Como o senhor vê essa questão?
Haroldo Mattos de Lemos -  O que está acontecendo aqui no Brasil, em São Paulo e em outras regiões, inclusive do resto do mundo, é uma coisa que os cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudancas Climáticas (IPCC) já vinham alertando há varios anos: os eventos climáticos extremos, as secas, os temporais, ficariam cada vez mais fortes e frequentes no futuro. E isso está apenas começando, se intensificará. Há dois anos, por exemplo, tivemos no Rio de Janeiro, na região serrana, aquelas chuvaradas terríveis, com desmoronamentos e muitas mortes. E, no outro extremo, vemos a mesma situação em São Paulo, com a seca cada vez mais longa. Concordo com a opinião dos especialistas que insistem no reflorestamento, porque uma das causas da crise é, sim, o desmatamento em matas ciliares e nas nascentes dos rios. Quando você tem floresta, ela segura a água da chuva, facilita com que o recurso penetre mais facilmente na terra. Agora, se não há floresta, que é o caso, mesmo a chuva mais intensa escorre direto no rio e só uma parcela muito pequena acaba entrando no solo. O desmatamento na Amazônia, que voltou a subir neste ano, também é responsável pela situação, pois reduz a quantidade de vapor d'água que a floresta lança na atmosfera, trazendo às regiões Centro-Oeste e Sudeste aquilo que chamamos de rios voadores. Estamos diante de emergências cada vez maiores, e enfrentar o problema com grandes obras, sem prestarmos atenção na questão do meio-ambiente, é pedir para que a crise atual volte a se repetir.
O governo anunciou o lançamento de diversas medidas para evitar a seca: bombeamento do "volume morto", transposições, reúso de água. Entretanto, muitos especialistas falam que tais medidas são muitas vezes apenas paliativas para os problemas enfrentados pela população. Qual é a sua opinião a respeito?
Haroldo Mattos de Lemos - Não acho que tais medidas possam ser classificadas como paliativas. Diminuir desperdício de água, por exemplo, é algo que a população já deveria estar praticando há muito tempo. Infelizmente, no Brasil, como sempre houve abundância de água, de floresta, fomos criados nesse ambiente de ilusão de recursos infinitos. Um exemplo disso é a "tecnologia tupiniquim" da vassoura hidráulica, que é lavar calçada com mangueira. Isso é o maior absurdo do mundo, uma coisa que jamais deveria ser permitida. O reúso da água também é importante, praticado em vários lugares onde a água é escassa. São Paulo já tem estações de tratamento terciário de água do esgoto, nas quais o recurso fica melhor tratado, não é potável, mas é vendido pela Sabesp às prefeituras para se lavar ruas depois de feiras livres ou mesmo para as próprias indústrias. Espero que agora, com a crise, essa prática se intensifique, principalmente para não usarmos água potável, que é limitada e custa muito dinheiro, para lavar chão ou carro.
E quanto à construção de cisternas para a captação de água da chuva?
É outra terceira questão necessária. Algumas capitais brasileiras já têm colocado isso em prática, obrigando que novos prédios tenham uma cisterna pra armazenar água das chuvas. E se todos os prédios adotassem esse modelo, inclusive os mais antigos, iriam contribuir não só para a economia de água, mas também para a diminuição de enchentes, porque, em vez de ir direto para a rua, a água estaria passando antes para as cisternas.
Como o senhor avalia a gestão do governo paulista em relação à crise hídrica?
Em primeiro lugar, gestão de crise demanda cautela. Campanhas para reduzir o desperdício, como as já lançadas pelo governo, têm ajudado. Agora, uma campanha ainda mais forte de racionamento de água, que acredito que ainda possa ser deflagrada caso a situação piore, só deve ser lançada quando tivermos a certeza absoluta de que a falta de água total realmente chegará. Isso porque se existe um sinal de possibilidade de crise e você anuncia uma campanha, as pessoas começam a estocar água, o que também gera desperdício. Se todas as vezes que entrar água na sua casa você começar a encher banheira e baldes e quando a água volta você a joga fora para substituir por uma fresca, isso também provoca desperdício. Além disso, caso a crise não venha com força depois de você tê-la divulgado amplamente, o governo acaba perdendo credibilidade, a população perde a confiança, passa a não acreditar mais nele. Definitivamente não é algo fácil de se lidar. Acredito que o governo paulista, até agora, tem trabalhado de forma correta nesse sentido. No Rio de Janeiro, quando tínhamos falta de água, víamos isso acontecer sempre: as pessoas enchiam tudo o que podiam com o recurso e, quando voltava a água, jogavam tudo fora. Assim, no momento, o principal é reduzir o desperdício e criar uma nova cultura em relação ao uso de água no Estado e no País.
É quase unânime entre especialistas que uma forma efetiva para se evitar desperdício seria aumentar o preço da água levada às residências. O senhor concorda com isso?
Sem dúvida. A água aqui no Brasil é muito barata. Basta você verificar quanto tem pagado por mês pelo recurso e fazer as contas: verá que em muitos casos paga menos pela água do que pelos três ou quatro cafézinhos que toma por dia na rua. O problema é que ninguém dá muito valor à água. Isso só acontece quando ela começa a faltar. Então concordo totalmente com a opção de se aumentar o preço da água, porque, dessa forma, as pessoas que desperdiçam sentirão o mau uso no bolso. Hoje, a população não se dá conta de que a água, com a qual não vive sem, é bem mais barata do que suas duas, três cervejas tomadas no boteco da esquina. Paga-se pouco pela água no Brasil e, por isso, as pessoas acabam não dando valor a ela.
A Sabesp autorizou, na sexta-feira (14), o reajuste do preço da água cobrada nas cidades que contam com seu abastecimento. Entretanto, o aumento já havia sido aprovado em abril e só será implementado em dezembro, meses depois de Geraldo Alckmin ter sido reeleito governador do Estado. O senhor vê uso eleitoreiro da questão?
A questão do uso eleitoreiro é complexa. Diga-me um governo que divulga informações negativas antes de eleições. Se o governo de São Paulo teve o cuidado de aplicar esse aumento só depois da eleição, o mesmo ocorreu com o partido no poder executivo federal, que escondeu muitas informações até reeleger a presidente. Infelizmente, essa é uma prática generalizada – e não só no Brasil. A realidade, um dos males do mundo, é que a maioria dos governos da Terra planeja suas ações pensando nas próximas eleições. E isso significa um planejamento de curto prazo, quando, na realidade, na nossa situação de esgotamento de recursos, o mundo precisaria que os governos planejassem pensando em longo prazo. Políticas de curto prazo definitivamente não são boas para a sustentabilidade.
A questão do reflorestamento das áreas de reservatórios seria, então, vista como impopular pelos governantes?
Sem dúvida, grande obras sempre chamam mais a atenção, além de atrair um grande número de empreiteiras interessadas. Infelizmente, o normal no mundo inteiro é a preferência por fazer grandes obras. É uma questão que a população tem de começar a perceber melhor para exigir dos governos em todos os níveis – municipal, estadual e federal – que haja planejamento de longo prazo. O reflorestamento pode não ser tão custoso quanto as obras, mas é demorado e também se gasta dinheiro com ele. Não basta comprar mudas e ir embora: é preciso investimento para que essas mudas sobrevivam e se transformem em floresta. O governo do Rio de Janeiro, por meio da companhia de águas estadual, tem realizado reflorestamento em reservatórios usando presos pagos para o serviço. É uma espécie de programa de reessocialização. Assim, o reflorestamento pode ser encarado não só como necessário para a questão de águas e de manutenção da fauna e flora, mas também como um trabalho que exige muita mão de obra que possa ser usado para ressocializar os presidiários.
O governo paulista responsabilizou nesta semana a própria população que fica sem abastecimento à noite por não ter o recurso devido à falta de caixas d'água em suas casas. O que o senhor acha dessa afirmação?
Sou mais radical em relação a isso. Se você vai a países desenvolvidos, as casas não têm reservatórios próprios. Estes são usados em países em desenvolvimento pelo fato de a população não ter garantia de que vai ter água na rede o dia todo. É uma segurança para as pessoas. Agora, se você vai para os Estados Unidos, para a Alemanha, não existe caixa d'água: o recurso sai da torneira vindo diretamente da rua. Em questões de saúde também é melhor, porque grande parte da contaminação da água é por falta de cuidados com os reservatórios privativos. Eu acho que se o Brasil um dia chegar a um estágio melhor de desenvolvimento, nossos sistemas terão de funcionar como nos países desenvolvidos, da rua para a torneira. Não concordo que as pessoas devam ser alertadas para construir reservatórios maiores, porque isso é um custo a mais ao contribuinte, um custo que não deveria ser dele. O abastecimento de água deveria ser permanente. Falar em caixa d'água como uma obrigação é retirar do governo uma parte da sua responsabilidade e jogá-la nas mãos do contribuinte.

Existe um senso comum de que no futuro a água será um bem tão ou mais valioso do que hoje é o petróleo. 
Sem dúvida, a água se tornará o petróleo do futuro. Há bastante tempo, em 1982, fui trabalhar na sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) em Nairóbi, no Quênia. Vivi ali por cinco anos e me marcou muito uma coisa que o diretor-executivo do programa na época, um egípcio, me disse ao chegar: "Neste século XX as grandes guerras foram pela posse de recursos naturais ou petróleo; no futuro, serão pela água". Apesar de o Egito ter o gigantesco Rio Nilo em seu território, as terras no país são desérticas, ou seja, ele já tinha a exata noção do valor da água mais de três décadas atrás. O ser humano pode viver sem petróleo, mas não consegue viver sem água.
O senhor vê uma mudança em relação à mentalidade de governantes e da população em relação ao valor da água?
Vejo uma mudança, mas ainda bastante incipiente. No entanto, acredito que esses problemas atuais, em função das secas mais prolongadas e que tendem a se repetir com mais frequência no futuro, levarão tal consciência a chegar rapidamente à população mundial. A posse da água será complicada daqui a algum tempo, temos países que dividem bacias hidrográficas, como o próprio Egito, que têm ampliado a discussão sobre a intenção de construir represas para também se beneficiarem do acúmulo de água no Nilo. Discussões como essas serão cada vez mais frequentes no futuro, na medida em que a população do mundo só aumenta e a água continua sendo a mesma de sempre.
Com informações do portal Ig.

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